Doce de fita de mamão verde, cajuzinho do cerrado, frutas cristalizadas no açúcar, doce de goiaba (não é goiabada), figo verde em calda, ambrosia, pingo de leite, doce de limãozinho recheado, flor de fitas de coco... A lista é imensa e mostra a influência da doçaria portuguesa, que por sua vez, deve muito à cultura árabe, conforme afirma Gilberto Freyre em suas escrituras.
A sociedade brasileira foi forjada no açúcar, graças ao movimento da cana implantada desde o início da colonização. É nesse contexto que
os doces reinam absolutos em sua áurea de nobreza, como bem sabe a doceira Adriana Lira, do ateliê Dona Doceira, em São Paulo. É ela quem faz joias açucaradas quem vêm desaparecendo no tempo.
A história conta que os doces são fruto de técnicas milenares aplicadas à abundante flora local num Brasil colonial escravocrata no qual comer frutas in natura era coisa de nativos, gente rústica ou crianças. Pessoas de paladar refinado, preferiam as frutas em forma de refrescos, sorvetes ou doces, já acrescidas de bastante açúcar, a grande riqueza local.
Não é difícil imaginar que, nessa época, a importância dos bocados se estendia a quem os preparava. Cozinhar a comida salgada era uma atividade menor relegada às escravas domésticas, mas o fazer dos doces não. “A aprendizagem deles fazia parte da boa formação das moças de sociedade, ao lado do bordado e, para as famílias mais abastadas, do piano e do francês, já no começo do século 20”, afirma Câmara Cascudo.
Aos doces também cabiam um papel simbólico social. “Era a saudação mais profunda, significativa, insubstituível. Oferta, lembrança, prêmio, homenagem traduziam-se pela bandeja de doces...O doce visitava, fazia amizades, carpia, festejava”, descreve o antropólogo.
Muitas dessas receitas, no entanto, já se perderam. Algumas jamais escritas em papel passaram de geração em geração, em conversas ao pé do fogão. Tratadas como verdadeiros segredos de família, guardadas a sete chaves. Só reveladas de mãe para filha como que ensinamentos para a vida.
Foi assim que Adriana Lira se tornou uma doceira de mão cheia. Nascida em Goiânia (GO), passou a infância entre a capital e a Fazenda Santa Helena, da família, que hoje é responsável pela produção das frutas orgânicas usadas no preparo dos doces que ela faz. “Fui criada entre muitas avós, bisavós e tias-avós quituteiras, vendo essas mulheres prepararem doces maravilhosos. Lembro de ficar encantada com delicadeza das formas e o longo tempo de preparo das receitas que elas faziam.”
Da infância na fazenda à beira do fogão, Adriana foi trabalhar como executiva de comunicação. Foram anos até que a paixão por doces falasse mais alto e a trouxesse de volta à cozinha. “Decidi resgatar as lembranças dos docinhos que consumia quando criança, estudei os livros de família e viajei para a Cidade de Goiás (Goiás Velho, ex-capital do estado) para pesquisar a história desses doces e conhecer as doceiras originais.”
Adriana percebeu que as receitas estavam sumindo, de fato. Mais um motivo para isso é a complexidade dos preparos. Esses doces não são para qualquer um, é preciso ter mão boa para fazê-los, como se diz lá em Goiás. Mas acima de tudo exigem tempo, paciência e braços. “Geralmente se juntava toda a família para fazer um doce e cada um tinha uma função no preparo.” Por exemplo, o doce de mamão verde em fitas.
“O mamão precisa ser cortado em fatias finas e depois enrolado e costurado um por um com agulha e linha, formando um cordão de caracóis.” Depois deve permanecer de molho por 24 horas em água que tem de ser trocada de tempos em tempos para que se perca todo o líquido ácido da fruta verde. Só depois ele vai para panela. “São receitas que requerem esforço e, em alguns casos, até uma boa dose de sacrifício”, aponta a doceira. Afinal são preparos trabalhosos que envolvem muitas etapas e incontáveis horas de pé na frente do fogão velando o tacho.
Tanto trabalho o vale a pena? Claro. “Além de lindos, os doces são deliciosos e encantam pela delicadeza e originalidade.” A flor de coco, por exemplo, é como uma cocada, mas a montagem e o formato fazem toda a diferença. Tanta dedicação no preparo fazem dessas receitas a materialização de afetividade. Eles são a alma feminina das mulheres do Brasil, conforme bem define a obra Larousse da Gastronomia Brasileira.
Dona doceira – Rua Tabapuã, Altura do nº 838 Vila Aurélia, Casa 06 - Itaim Bibi, São Paulo - SP
Cora Coralina moldava o açúcar com a mesma facilidade que compunha versos
Recria tua vida,
sempre, sempre
Remove pedras e planta roseiras e faz docesRecomeça
O trecho acima é do poema “Aninha e Suas Pedras”, de Cora Coralina, pseudônimo de Anna Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, escritora goiana, que viveu na Cidade de Goiás de 1889 a 1985. Reconhecida poetisa e contista brasileira, veja só, se considerava melhor com doces do que com palavras. Ela era uma mulher simples que fazia doces de tacho para ajudar no sustento da família. Só teve seu primeiro livro de poemas publicado quando tinha 79 anos, embora tenha escrito durante a vida toda. Sua obra poética rica apresenta motivos do cotidiano do interior brasileiro, da culinária e claro, dos doces.